Trabalho de Base

Método e Trabalho de Base

Nós, do Movimento de Organização de Base, viemos nos últimos anos estreitando relações com o Movimento das Comunidades Populares. Entendemos que este movimento, existente 44 anos, tem muitas contribuições práticas e teóricas para aplicarmos aos nossos trabalhos de base. Por isso, tomamos como referência um documento fundador do movimento, o “Ação Cultural” (1969), e fizemos uma releitura (livre interpretação) a partir da nossa realidade, a fim de aprimorar nossos trabalhos de base.

Para romper com esse sistema de exploração e de várias formas de dominação às quais somos submetidos cotidianamente é preciso pensar formas, pensar métodos para nos organizarmos e juntos rompermos com as correntes que nos prendem.

Tática e Estratégia

Primeiro, precisamos ter claro qual é nosso objetivo final: sociedade livre e igualitária. A partir daí criamos estratégia e táticas. A estratégia corresponde aos meios de longo prazo pelos quais chegaremos ao objetivo final. Mas para isso, existem também os objetivos de curto prazo (tática), que podem variar conforme a conjuntura. Por exemplo, podemos avaliar que realizar trabalho de base, nos reconhecendo como parte e nos inserindo em meio à classe trabalhadora é uma estratégia. Porém, em alguns contextos de maior ou menor repressão e dependendo da configuração de outros grupos de esquerda, podemos ou não participar de uma ocupação de prédio, por exemplo, isso seria uma tática para ampliar nosso trabalho de base. A tática deve ser flexível para se adaptar às diferentes conjunturas. De qualquer maneira, o fundamental é que tática e estratégia não sejam contraditórios e que se tenha sempre plena consciência do objetivo final.

O que precisamos enfrentar?

Compreendemos que nossa sociedade é perpassada por uma série de problemas que são frutos das ações históricas dos seres humanos. No decorrer do tempo, os seres humanos foram desenvolvendo formas de se relacionar socialmente que, infelizmente, submeteram parte da sociedade ao controle de grupos específicos. Assim, as mulheres foram submetidas aos homens e os trabalhadores foram submetidos àqueles que se tornaram donos dos meios de produção, ou seja, donos daquilo que é necessário para produzir as coisas que são fundamentais à sobrevivência dos seres humanos (alimentação, vestuário, transporte, etc.).

Assim, entendemos que nossa realidade é perpassada pela existência de contradições antagônicas e por contradições no meio do próprio povo, que dividem o povo. Com relação às contradições antagônicas, estas se referem às contradições entre as classes dominantes e a classe trabalhadora. Nesse sentido são irreconciliáveis, sendo necessário um dos lados ser abolido, no caso é preciso acabar com a propriedade dos meios de produção, acabar com os capitalistas enquanto classe social. Mas há também as contradições no meio do próprio povo, que dividem o povo. Estas são entraves à união real da classe trabalhadora e oprimem, as vezes brutalmente, uma parcela da classe. Destacamos à opressão de gênero que submete metade da população, sendo a imensa maioria mulheres da classe trabalhadora. O racismo, ainda que com suas origens diretamente relacionadas à exploração do trabalho escravizado, é uma criação cultural que se espalhou também em meio à classe trabalhadora, dividindo-a e oprimindo os negros e indígenas. A homofobia também condena a uma vida de “semiclandestinidade” os homossexuais, que acabam tendo que esconder-se, precisam camuflar suas manifestações de carinho e sexualidade para não serem reprimidos por atitudes homofóbicas, podendo serem mortos inclusive. Assim, entendemos que estas e outras contradições devem ser superadas em meio à classe, primeiramente porque são formas de opressão tão cruéis quanto à opressão econômica propriamente dita, e segundo porque enquanto tal, reduzem nossa força social para combater os capitalistas, os quais lucram inclusive com essas opressões, como fica explícito do caso do machismo que rende lucros astronômicos às indústrias de cosméticos, moda, propagandas, cirurgias plásticas, dentre outras, enquanto as mulheres têm seu psicológico, sua autoestima, jogados no ralo para o enriquecimento privado.

Como iremos enfrentar o Capitalismo?

Muitos são os que desejam realizar a transformação social e que buscam uma inserção social para fazer isso. Porém, consideramos Para começar, identificam-se basicamente três formas de trabalhos de base em meio aos grupos de esquerda, que podem ser assim caracterizadas:

1- Invasão Cultural:

A Invasão Cultural ocorre quando as pessoas que desejam mudar a realidade, acabam por levar e impor sua cultura ao povo. A consequência é que eles saem derrotados, pois o povo rechaça essa postura e não aceita o que eles têm para propor.

2- Submissão Cultural ou Basismo:

A Submissão Cultural é o extremo oposto, é se anular e assimilar a cultura do povo, sem criticar o que há de reprodução do pensamento capitalista nela. Essa postura dificilmente traz alguma transformação social.

3- Síntese Cultural:

A Síntese Cultural parte da ideia de que é necessário não nos descolarmos, mas nos entendermos como parte da classe trabalhadora, parte do povo, e dessa forma construirmos juntos alternativas que possam conduzir à transformação social.

De forma a não nos descolarmos da classe trabalhadora, ou seja, não agirmos como invasores, nem também aceitarmos tudo que o povo faz como certo, é preciso aprender a caminharmos juntos. Para isso, existe um método de trabalho utilizado pelo MCP que nós também já utilizamos, não de maneira mecânica, mas nos apropriamos conforme as especificidades dos nossos trabalhos e as pessoas com eles envolvidas.

O método deveria contemplar as seguintes “etapas” de trabalho:

1º Conviver diretamente com as pessoas envolvidas com nosso trabalho de base, para assim poder conhecer nesse meio quais as principais questões que afetam/interessam essas pessoas.

2º Uma vez que vivenciamos o cotidiano da classe trabalhadora e nos reconhecemos como tal, devemos perceber os problemas e questões importantes a se trabalhar e a seguir, enquanto parcela organizada do povo, devemos sistematiza-los para apresentar aos envolvidos nos trabalhos de base. É importante que essa sistematização seja feita de forma a usar uma linguagem acessível ao maior número de pessoas possível, desde jovens, idosos, crianças, pessoas com maior ou menor grau de instrução formal.

3º Já que identificados os problemas, é preciso saber se realmente o que nós percebemos como problema é o mesmo que o grupo mais amplo com o qual desejamos atuar também percebe como problema. Caso contrário, nossa ação será rechaçada e não construiremos juntos, mas agiremos como vanguarda. Por isso é importante discutir com todas (os) as (os) envolvidas (os) a fim de concluir quais são os reais interesses e decidirmos juntos.

4º Ao final podemos enfim ter claras as ações que devemos realizar, pois elas não partiram da cabeça de uma pessoa iluminada, mas sim da coletividade. Para então materializar isso, as pessoas envolvidas precisam planejar, precisam criar um plano de ação. Para isso, é necessário envolver os mais interessados e distribuir tarefas, estipular prazos etc.

Algumas observações finais sobre o método de trabalho

No nosso trabalho de base é importante evitarmos moralismos: não se pode ter medo de discutir com quem pensa diferente, de forma reacionária. Se tivermos claros e seguros os nossos objetivos, isso não será um problema. Ao mesmo tempo, precisamos entender que conflitos devem ser evitados ao máximo! Se o conflito com os capitalistas é desejável e inevitável, entre nós e com os grupos aliados ele precisa ser o menor possível. Conforme escrito no documento “Ação Cultural”: “Se posso fazer a mudança social com 10 conflitos, não tenho o direito de provocar 11 ou mais. É preciso lutar para baixar o custo social da transformação social”. Em outras palavras “Paz entre nós, guerra aos senhores!”.

Destacamos que não somos nós quem vai conscientizar o povo, mas nos conscientizaremos juntos, na medida em que como parte da classe trabalhadora, vivenciamos o cotidiano do povo. Além disso, não há conscientização sem ação, como diria Rosa Luxemburgo “Quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem”. A consciência vem então junto com a prática, e a partir da prática refletimos, ou seja, produzimos teoria. Teoria e prática são coisas então que se retroalimentam, sendo uma fruto da outra.

Gênero

A herança histórica de inferiorização que permeia ainda hoje nossa cultura enxerga tudo que remete ao feminino como menos capaz física e intelectualmente. Tudo que se opõe ao ideal de masculinidade é muitas vezes visto como motivado apenas pela emoção e sensibilidade, privado de consciência e razão. Isto quer dizer que, todo comportamento, aparência ou relacionamento que não seja considerado “tradicional” ou “normal” é visto como errado e reprimido com violência. E tendo por base estes papéis projetados de submissão e dependência, ainda hoje a questão de gênero envolve violência psicológica, verbal e mesmo física, entre outras.

É importante lembrar que qualquer manifestação de discriminação de gênero é violência. Deve ser visto como comportamento grave de dominação, controle, poder e propriedade, herança histórica imposta pela sociedade machista, patriarcal e capitalista, entranhado no comportamento social e naturalizado, mantendo os fatos ainda velados. Além disso, a opressão de gênero está também atrelada a uma questão de classe. A mulher, por exemplo, é mais ou menos oprimida de acordo com a classe à qual pertence, estando sempre em posição inferior aos homens dentro da própria classe. Há quem pense que a discussão sobre gênero está superada, mas a relação hierárquica do homem sobre a mulher permanece presente, sendo bastante sintomática nos lares, nos trabalhos, nos espaços de convivência, onde muitas vezes os discursos não condizem com as práticas, ou se usam dois pesos e duas medidas.

Ademais, a liberdade de todo indivíduo oprimido está atrelada à libertação humana, que por sua vez está conectada à destruição do capital. Para tal, ambos os gêneros devem lutar juntos contra toda forma de opressão e exploração, por uma sociedade verdadeiramente justa e igualitária. Infelizmente, quando olhamos para a história do Brasil, podemos perceber que em boa parte foi marcada por violência, desigualdade e intolerância. Desde a chegada dos colonizadores que nos deixaram uma herança de escravismo e desigualdade, até hoje quando os interesses de poucos ainda ficam acima do bem estar da maioria.

Esta tradição autoritária impõe ainda, padrões de convivência e relacionamento baseados em tradições religiosas e culturais. Diariamente, muitos indivíduos LGBTT’s (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis) sofrem violência física, psicológica e simbólica, sendo ainda, muitas vezes socialmente excluídos e até exterminados A mulher é pintada por uma sociedade que insiste há tempos em torna-la “frágil”, como um objeto-propriedade. No Brasil, cerca de 90% dos casos das agressões são cometidos por seus próprios companheiros e ex-companheiros e cerca de 10% por outros, incluindo parentes. Em muitos casos as agressões causam lesões graves e levam ao óbito (feminicídio). A vergonha, o sentimento de culpa, a dependência emocional e financeira são entraves para que as mulheres denunciem seus agressores, e a situação se complica ainda mais quando existem filhos. Além disso, o atendimento e julgamento desses casos são muitas vezes vistos tanto pela polícia como pela (in)justiça, como crimes passionais e de ordem pessoal. Influenciando a sociedade a encarar da mesma maneira, desencorajam as mulheres a procurar ajuda e seus direitos.

Quanto à violência sexual, os agressores e a mídia muitas vezes se justificam culpabilizando as vítimas por serem estupradas e abusadas devido às suas vestimentas ou ao horário em que saíram à noite, por embriagues, ou mesmo seu comportamento. Quando a única na verdade, é a relação de poder e propriedade, bem como a certeza da impunidade que lhes encoraja tais atos. A discriminação de gênero aparece também nos postos de trabalho, quando indivíduos que não se “encaixam” nos padrões tradicionais sofrem assédio moral e outros tipos de constrangimentos. Muitos homossexuais não podem se assumir publicamente com medo de perder o emprego ou sofrer qualquer tipo de violência, as mulheres muitas vezes tem salários significativamente inferiores. E, a despeito de existirem leis que deveriam proteger o(a) trabalhador(a), ainda correm o risco de perder o emprego em caso de gravidez.

Ainda no caso das mulheres por identidade de gênero, como, por exemplo, transexuais estas muitas vezes são perseguidas e até mesmo mortas com tal grau de violência que não há possibilidade nem de reconhecer suas identidades. A mídia também nos violenta impondo padrões de beleza com suas propagandas, programas sexistas apelando para nudez em troca de audiência ou criando personagens com um perfil “inferior” de feminilidade em troca de humor. Sendo elas sempre, negras, pobres, analfabetas e etc. As mulheres que se encaixam neste perfil, na maioria das vezes, exercem trabalhos servis e têm menos acesso à educação e à cultura. A questão do racismo também aqui se apresenta de forma significativa, e não é muito diferente se falarmos em termos de dignidade.

Findo o período escravocrata, permaneceu o preconceito. Sabe-se que mulheres brancas possuem melhores oportunidade do que mulheres negras, seja no trabalho, na vida social, na escola etc. Mulheres negras são quase sempre vistas com má índole, como ladras e objetos sexuais. Exercendo muitas vezes serviços domésticos e manuais, ainda considerados inferiores, como um reflexo de nossa herança escravocrata.

Há ainda outras formas de violência cometidas por questão de gênero, muitas delas institucionalizadas, como o caso de mães em situação de rua que perdem o pátrio poder e tem seus filhos levados para abrigos e encaminhados para adoção. Entendemos que em casos extremos de dependência química, quando a mulher não tem condições de cuidar da criança, isso se faz necessário. Porém é inadmissível que a mulher chegue a esse ponto sem receber assistência nenhuma por parte do Poder Público.

Queremos reiterar que somos a favor de toda e qualquer manifestação de afetividade, da livre expressão corporal e cultural de todos os indivíduos. Rechaçando todo e qualquer tipo de censura ou atentado violento e autoritário contra a livre expressão humana. A pluralidade do ser humano é algo que se desdobra de forma enriquecedora e natural, a feminilidade ou masculinidade não estão restritas a experimentação de um só sexo biológico em particular. Se a cultura popular tem elementos libertadores pode também reproduzir elementos do machismo, da homofobia e outras opressões. Precisamos trabalhar com os elementos que unam a classe, não reproduzam opressões e que não os que a dividam (homofobia, racismo, machismo). Ao mesmo tempo, temos de ter a sensibilidade de partir, compreender, respeitar e potencializar a realidade e a cultura populares para avançar juntos.

Não podemos esperar o fim da dominação capitalista para resolver o problema da dominação de gênero, da sexualidade e de outras opressões. Esse tema deve ser debatido sem autoritarismos e de forma coletiva, desde já, nos movimentos populares e espaços dos(as) trabalhadores, de maneira a envolver no debate não apenas aquelas(es) que mais sofrem com essas opressões. mas também homens e mulheres dispostos(as) a avançar. É importante também que esses temas não sejam vistos como temas “menores” ou não-prioritários nos movimentos populares e da mesma forma é fundamental que esse debate seja incentivado e não se descolem totalmente desses espaços.

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